A Pesquisa Vacina Maré, iniciativa da Fiocruz, em parceria com a Redes da Maré e a Prefeitura do Rio, teve início em 2021 e, com objetivo principal avaliar a efetividade da vacina contra a Covid-19 e analisar o impacto da pandemia na comunidade da Maré, no Rio de Janeiro. Os resultados e achados desta pesquisa contribuem para um estudo global sobre vacinação, variantes do vírus e efeitos prolongados da Covid-19 (Covid Longa) [1] [2] [3].

Vacina Mare Brazil

Como engajamento comunitário e de stakeholders durante a pandemia de COVID-19 contribuiu para o desenvolvimento da Pesquisa Vacina Maré? 

O conjunto de favelas da Maré - composto por 16 favelas localizadas na zona norte do Rio de Janeiro que abrigam aproximadamente 140 mil habitantes - guarda muitas particularidades, mas em comum pode-se dizer que este foi forjado pela histórica mobilização e luta dos moradores por melhores condições de vida e garantia de direitos (à moradia, à educação, à saneamento básico, à segurança pública, e à saúde também).

No contexto da pandemia de COVID-19 as ações de mobilização se revelaram ainda mais potentes e muitos trabalhos foram desenvolvidos no sentido de proteger os moradores da contaminação e diminuir a letalidade do vírus que foi maior em territórios de favelas e periferias.

Através das articulações encabeçadas pela Redes da Maré (organização que atua há mais de 20 anos no território) e da já histórica relação da Fiocruz com o território da Maré, iniciou-se o diálogo com outros parceiros como SAS Brasil, Dados do Bem, Conselho Comunitário de Manguinhos, com apoio do ITpS (Instituto Todos pela Saúde) e da Prefeitura do Rio de Janeiro sendo possível realizar um projeto denominado Conexão Saúde [4][5]. Foi um projeto inovador que ofertava testagem gratuita para todos os moradores da Maré e em caso de confirmação de infecção por COVID-19, o morador tinha acesso a atendimento médico e psicológico, e socia. Além disso, estratégias de comunicação e mobilização foram fundamentais para o combate às notícias falsase para a prevenção e promoção da saúde no território. Para execução bem-sucedida do projeto, foram fundamentais os parceiros formais e stakeholders, bem como o engajamento comunitário com associações de moradores, escolas, unidades do Sistema Único de Saúde (SUS), comerciantes e outras ONGs.

Os resultados do Conexão Saúde foram realmente impactantes, o número de mortes por COVID-19 na Maré diminuiu drasticamente e o projeto fortaleceu ainda mais a articulação e a parceria entre os stakeholders para a realização da campanha de vacinação contra COVID-19 (Campanha Vacina Maré) que deu origem a “Pesquisa Vacina Maré”. 

Uma característica estrutural da pesquisa foi a governança compartilhada, na qual todos os atores envolvidos tinham vez e voz. Essa característica também foi um fator que contribuiu para o engajamento comunitário e dos stakeholders, uma vez que todos estavam incluídos no processo de planejamento e gestão dos estudos. Estabeleceu-se um ambiente de gestão participativa e horizontalizada, em que os diferentes conhecimentos eram valorizados, desde a coordenação até a equipe de campo, passando pela equipe de comunicação e articulação territorial, incluindo os parceiros institucionais (stakeholders de instituições públicas ou privadas) e a própria comunidade.  

Perfil dos stakeholders a partir do Pathfinder Vacina Maré

O Pathfinder é um estudo que se concentra em investigar e mapear os processos envolvidos nos ciclos de pesquisa, realizadas especialmente em ambientes com recursos limitados, como países de baixa e média renda. Seu objetivo principal é facilitar o sucesso de um projeto de investigação (chamado de estudo anfitrião) ao identificar e registrar suas etapas essenciais, rastreando indicadores-chave como tempo e recursos necessários. Além disso, o Pathfinder oferece suporte na identificação e superação de obstáculos, buscando soluções para alcançar os objetivos da pesquisa. Uma parte fundamental do projeto é a captura e compartilhamento de ferramentas, métodos, tecnologias e processos de governança importantes para enfrentar cada desafio encontrado, utilizando os aprendizados e resultados para a disseminação em outros contextos de pesquisa que possam enfrentar desafios similares.

A Pesquisa Vacina Maré foi selecionada para um estudo Pathfinder, em 2023, devido ao seu êxito no contexto da pandemia em território vulnerabilizado, além das valiosas lições com potenciais transformadores e a dimensão dos seus resultados que vão para além das publicações científicas produzidas a partir dos dados coletados durante os estudos. 

Através do mapeamento realizado pelo Pathfinder Vacina Maré, foi elaborado um dashboard no qual é possível conhecer o perfil dos agentes e stakeholders, ou seja, os diversos atores envolvidos nas etapas da Pesquisa Vacina Maré. Como constatado através do Pathfinder, mais de 150 agentes estiveram envolvidos no processo de trabalho da Pesquisa Vacina Maré, representando mais de 20 instituições e/ou organizações. Tais agentes se distribuíram de acordo com funções específicas: stakeholder, equipe de campo, pesquisador, agente de engajamento, coordenação central, coordenação de campo, coordenação de dados, equipe de comunicação, equipe de dados e coordenação de comunicação. Entendemos que todas essas funções foram imprescindíveis para obter os resultados exitosos dos estudos.

Vacina Mare Partes Interesadas

É importante enfatizar que um elemento crucial que caracteriza a Pesquisa Vacina Maré foi justamente a colaboração na governança, que reúne várias iniciativas, parcerias e atores para atender às necessidades dos estudos e demandas locais, considerando suas particularidades. Para isso, foram constituídas equipes, incluindo uma coordenação central liderada pelo Pesquisador Principal Fernando Bozza. A articulação territorial e a coleta de dados pessoais e laboratoriais foram realizadas pela equipe de campo, enquanto outra equipe ficou encarregada de definir a forma de coleta, armazenamento e análise dos dados. Além disso, para promover o engajamento da comunidade, foi formada uma equipe de comunicação, somada a equipe de articuladores territoriais, moradores da Maré.

A criação de confiança e relacionamentos de longo prazo com a comunidade revelou-se determinante para o sucesso dos estudos. O envolvimento contínuo dos atores chave permitiu que os moradores da comunidade se tornassem agentes ativos de mudança. Mecanismos eficazes de comunicação e feedback promoveram a transparência e o progresso do projeto. Assim como, a troca de conhecimentos entre diferentes atores destacou a importância de diversas perspectivas na abordagem dos desafios. As alianças institucionais e comunitárias e a colaboração interdisciplinar impulsionaram as iniciativas locais, demonstrando a eficácia da cooperação para alcançar objetivos comuns.

Quais competências e estratégias foram necessárias para promover o engajamento na “Pesquisa Vacina Maré”?

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A Maré tem como marca histórica a mobilização territorial, que se fortaleceu ainda mais no contexto da pandemia de COVID 19. O diferencial que possibilitou que, tanto a campanha de vacinação em massa, quanto a pesquisa Vacina Maré fosse realizada ali, não foi somente o fato de ser uma comunidade mobilizada para essa finalidade, mas também a existência de um know how, de uma tecnologia social para o engajamento comunitário com metodologia previamente estabelecida, aplicada em outros meios, desenvolvida pela Redes da Maré que atua no território há mais de 20 anos, trabalhando na perspectiva de ampliação e garantia de direitos, através da incidência política via engajamento comunitário. A novidade inserida pela Pesquisa Vacina Maré foi aplicar essa tecnologia social em campanhas de saúde pública e processos de pesquisa em saúde. Ou seja, os estudos científicos trouxeram essa tecnologia social já amadurecida para a viabilização de pesquisas em saúde.

É evidente que Pesquisa Vacina Maré tem seus méritos, pois conseguiu transformar a produção de dados científicos em ações, potencializando o conhecimento e a tecnologia social que já vinha sendo desenvolvida pela organização da sociedade civil. Entretanto, é imprescindível reconhecer que sem esse saber já bem consolidado ao longo de anos, talvez a pesquisa não teria tido tanto êxito. Então, se por um lado a Pesquisa Vacina Maré introduziu novos conhecimentos em termos de produção e análises de dados em pesquisas científicas na área da saúde, por outro lado, a equipe de pesquisa aprendeu muito com o conhecimento e a expertise acumulada no próprio território da Maré no que diz respeito ao engajamento comunitário e a mobilização territorial.      

Através do Pathfinder Vacina Maré foi possível observar que, nas ações de combate a pandemia que culminaram na Pesquisa Vacina Maré, o engajamento comunitário foi de fato um aspecto estrutural e estruturante para que os resultados fossem bem-sucedidos. Identificamos que, para o êxito da vacinação em massa, e consequentemente da Pesquisa Vacina Maré, foi importante mobilizar diferentes atores e frentes no território garantindo assim a participação do maior número de pessoas.

A mobilização para a pesquisa Vacina Maré envolveu diversos stakeholders e atores locais, incluindo os trabalhadores da Redes da Maré, a Fiocruz, a Prefeitura do Rio de Janeiro, escolas, unidades de saúde, associações de moradores, comerciantes, organizações comunitárias e voluntários locais. A comunicação e mobilização ocorreram por meio de visitas porta a porta, uso de megafones, flyers, carros de som e redes sociais. Influencers e artistas locais produziram conteúdos informativos para engajar a população. A Prefeitura, mobilizou profissionais da Secretaria de Saúde e Educação, e disponibilizou unidades de saúde e escolas como pontos de vacinação.

Para promover a identidade visual do projeto, foram distribuídos itens como ecobags, camisetas e squeezes. A comunicação foi planejada para ser simples e eficaz, com um enfoque na linguagem adequada ao público local. Ações contra notícias falsas foram realizadas através de comunicação rápida, redes sociais e parcerias com influenciadores locais. A equipe de pesquisa foi composta principalmente por moradores da Maré, com experiência em saúde e mobilização comunitária, o que facilitou a adaptação às necessidades locais e a identificação das demandas.

A estratégia também incluiu adaptações às condições locais, como o uso de carros de som em áreas com menor acesso à internet e visitas fora do horário comercial. A inclusão de moradores na equipe permitiu uma identificação mais orgânica das demandas e uma construção coletiva de soluções. A experiência conjunta e a busca coletiva por soluções inovadoras foram fundamentais para os resultados alcançados.

No que diz respeito ao engajamento da comunidade e das partes interessadas quais barreiras, soluções e aprendizados o Pathfinder Vacina Maré identificou?

A mobilização da comunidade para a vacinação contra a COVID-19, que inaugurou a Pesquisa Vacina Maré, enfrentou diversas barreiras. Primeiramente, houve dificuldades em convencer os residentes sobre a importância da vacinação, especialmente devido à disseminação notícias falsas. Outra questão foi a falta de uma equipe dedicada à comunicação e ao engajamento comunitário que limitou os esforços de mobilização local, no início do projeto.

No entanto, diante dos obstáculos, muitos aprendizados foram sendo nutridos e possibilitaram a implementação de soluções eficazes. O processo de engajamento comunitário envolveu uma variedade de atores e ter moradores da Maré compondo a equipe foi fundamental para o êxito da pesquisa. Estabelecer métodos de comunicação simples e direta e adaptar a estratégia com base no feedback dos articuladores comunitários são alguns exemplos de ações fundamentais para superar os desafios. 

A Pesquisa Vacina Maré visava não apenas contribuir para a saúde coletiva, mas também transformar dados em ações (data for action) para melhorar a qualidade de vida dos moradores locais, promovendo assim o engajamento comunitário para a equidade em saúde. Diversas habilidades foram essenciais, começando pelo profundo conhecimento da comunidade em questão. A gestão compartilhada e horizontalizada, a articulação intersetorial, a consolidação e validação dos dados, o uso de estratégias de comunicação adequadas e a adaptação às características locais foram fundamentais para o sucesso do engajamento comunitário. E, principalmente, a adoção de uma tecnologia social já muito bem consolidada pela Redes de Maré voltada para a mobilização territorial que possibilitou a realização da pesquisa na área da saúde pública.

No toolkit “Favela e ciência: como fazer pesquisas em territórios periféricos” (“Favelas and science: how to do research in peripheral territories”) é possível conhecer um pouco mais sobre a experiência, desafios e aprendizados adquiridos na construção do engajamento comunitário para a “Pesquisa Vacina Maré”. Por fim, é importante enfatizar que quando a pesquisa é realizada com a comunidade, os resultados tendem a ser mais relevantes e as ações mais eficazes. Identificar e superar obstáculos, compartilhar os resultados e implementar medidas para melhorar a qualidade de vida são passos cruciais, destacando a importância de fazer ciência com a população, não apenas para ela.

A Pesquisa Vacina Maré foi financiada por   

Os resultados e descobertas da pesquisa fizeram parte de uma investigação global sobre vacinação, variantes da doença e efeitos pós-covid (Covid Longa) chamada EFFECT-Brazil. Foi um dos dez projetos selecionados pelo ICODA (International Covid-19 Data Alliance), iniciativa da Fundação Bill e Melinda Gates. O Pathfinder é uma iniciativa financiada pela Fundação Bill & Melinda Gates e a Wellcome Trust.    

 

Fotos por Douglas Lopes

Flickr: https://www.flickr.com/photos/redesmare/albums/72157719586288512/

 

Referencias

1] RANZANI, Otavio T. et al. Vaccine effectiveness of ChAdOx1 nCoV-19 against COVID-19 in a socially vulnerable community in Rio de Janeiro, Brazil: a test-negative design study. Clinical Microbiology and Infection, v. 28, n. 5, p. 736. e1-736. e4, 2022.  

[2] BATISTA-DA-SILVA, Amanda A. et al. Maré cohort-profile: a prospective cohort study based in a socially vulnerable community during the COVID-19 pandemic in Rio de Janeiro, Brazil. Gates Open Research, v. 7, n. 22, p. 22, 2023.

[3] FISCHER, Ronald et al. What did you do to stay ‘sane’during the pandemic? A qualitative study to identify self-care mental health strategies utilized in a socially vulnerable population. Gates Open Research, v. 6, n. 79, p. 79, 2022.

[4] AROUCA, L. E., and BOZZA, F. A. Integrando vigilância e atenção em saúde durante a pandemia de covid-19: a experiência do Conexão Saúde na Favela da Maré. In: PORTELA, M. C., REIS, L. G. C., and LIMA, S. M. L., eds. Covid-19: desafios para a organização e repercussões nos sistemas e serviços de saúde [online]. Rio de Janeiro: Observatório Covid-19 Fiocruz, Editora Fiocruz, 2022, pp. 457-472. Informação para ação na Covid-19 series. ISBN: 978-65-5708-123-5. https://doi.org/10.7476/9786557081587.0032

[5] CERQUEIRA, E. Conexão Saúde no enfrentamento da pandemia de Covid-19. In: MATTA, G.C., REGO, S., SOUTO, E.P., and SEGATA, J., eds. Os impactos sociais da Covid-19 no Brasil: populações vulnerabilizadas e respostas à pandemia [online]. Rio de Janeiro: Observatório Covid 19; Editora FIOCRUZ, 2021, pp. 209-219. Informação para ação na Covid-19 series. ISBN: 978-65-5708-032-0. https://doi.org/10.7476/9786557080320.0017

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